Everardo Maciel, consultor e ex-secretário da Receita Federal
Publicado em 20/03/2011
Marcio Antonio Campos
Brasília - “Há pouca ciência e muita espuma quando o assunto é tributação”, diz o ex-secretário da Receita Federal Everardo Maciel, um dos maiores especialistas brasileiros sobre impostos. Palpites, às vezes baseados apenas em modelos teóricos, vêm de todo canto, mas, como diz Maciel, só quem está pilotando o avião tem a noção completa do que está acontecendo. Enquanto comandou a Receita, nos oito anos de governo FHC, trouxe inovações como o uso mais intensivo da internet. Fora do governo, dedica-se à consultoria. “E também sou contribuinte”, acrescenta. Maciel recebeu a Gazeta do Povo em seu escritório, em Brasília; falou sobre uma reforma tributária possível, sem utopias, e criticou a apatia do brasileiro, que cobra pouco por um bom uso dos impostos que paga.
Qual seria o melhor jeito de fazer uma reforma tributária?
Primeiro precisamos definir o que é reforma tributária, e isso não é fácil. Reformar é mudar uma coisa pra outra, mas há, dentro do sistema tributário, um milhão de opções para mudar de uma coisa pra outra, e são opções muitas vezes contraditórias entre si. A pergunta “fazer ou não fazer reforma?” é um dilema falso porque nunca dizem com precisão o que é essa reforma. Como dizer se sou a favor de uma coisa sem saber o que ela é? O sistema tributário é produto de forças políticas, não de modelos abstratos. Todas as vezes em que se tenta fazer uma reforma no todo, ela para porque se coloca todos contra todos. Mas, dentro do plano de uma eventual reforma, poderíamos dividir o modelo em três coisas distintas. A primeira é a carga tributária, que interessa ao contribuinte, não ao Estado. Baixar é simples, é só reduzir a alíquota, não precisa ser gênio para isso. Mas ela não cai porque há uma pressão forte, que é o gasto público. O segundo ponto é a partilha federativa, um assunto que toma conta de qualquer discussão tributária. Discutir percentuais de fundos de participação encerra qualquer debate: um quer mais, outro quer menos. Ninguém vai a lugar nenhum porque se coloca o Estado contra o contribuinte, estados contra municípios, estados contra a União, indústria contra comércio, comércio contra agricultura, é a guerra total. O terceiro item é a qualidade do sistema, que interessa apenas ao tributarista. O contribuinte não dá bola para isso, ele só quer saber quanto está pagando de imposto. O país pode ter um sistema péssimo em que o contribuinte paga pouco, e ele vai dizer “é isso que eu quero”.
Qual é a solução, então? Ela pode vir durante o governo Dilma?
A solução é atacar problemas objetivos e esquecer ideias refundacionistas. O nosso sistema tem disfuncionalidades visíveis, como acumulação de crédito e tributação excessiva de folha. Do que eu tenho visto do atual governo, ele está no caminho certo. O que a Dilma disse no discurso de posse, eu diria com as mesmas palavras. Queremos reduzir a carga na folha de salários? Sim, vamos tratar desse assunto. Queremos acabar com a guerra fiscal? Sim, tratemos disso. Só não dá para tratar tudo junto e jogar mais várias coisas, que não dará certo.
O Paraná acabou de lançar um programa de competitividade em um cenário de guerra fiscal. É possível acabar com ela?
A guerra do ICMS jamais deveria ter existido. A Lei Complementar 24, sancionada em janeiro de 1975 e incorporada na Constituição de 1988, veda a guerra fiscal e fala inclusive da nulidade dos créditos decorrentes de guerra fiscal. Mas esta guerra é um dos cenários da hipocrisia brasileira, em que todos são contra, mas ninguém faz nada. É como o jogo do bicho: é proibido e todo mundo consente. Se a isenção está ofendendo a lei, por que não se vai ao Judiciário? Por que o MP não trata do assunto? Por que o TCU, que tem competência sobre isso, não intervém? Simples: porque ninguém quer. Só isso. Essa lei foi criada em uma circunstância diferente. Ninguém descumpria porque era o governo militar; eu fui secretário de Fazenda naquela época, e todo mundo cumpria mesmo. Depois, ninguém mais deu bola. Quando o ICM foi criado, proclamaram em todo o Brasil que “acabou a guerra fiscal”, que existia e era modestíssima, irrisória, feita com o IVC. Quando fizeram o ICM, puseram na Constituição que a alíquota era uniforme em todo o território nacional, sem benefícios, a não ser com um acordo entre os estados. Mas depois de 1988 perdeu-se o controle. A Lei Complementar está obsoleta? Sim, e precisamos de um novo modelo, sair do plano da guerra para um conceito antagônico, que é o da competição fiscal lícita. Seria muito melhor dizer o que se pode fazer. A proibição completa é uma explicação para a violação continuada: não pode nada, só pode se todos concordarem, e nunca ninguém concorda. A competição sempre houve e haverá – paraíso fiscal é isso: o país exerce sua soberania contra a qual ninguém pode se insurgir. A lei está caduca, morreu; agora precisamos definir o que pode e o que não pode, do contrário ficamos numa competição ilegal e predatória.
Será mais fácil, então, desonerar a folha de pagamento?
Nada é consenso em matéria tributária. Há quem não queira tratar da tributação sobre folha. Boa parte dela vai para a Previdência, mas outra parte vai para o Incra, o Ministério da Educação, o sistema S, e para essa sequela absurda do getulismo que é o imposto sindical. É o tipo de coisa que faz sentido num certo momento. Na época do Getulio, o sindicalismo era inexistente, e o presidente deu um empurrão. Mas hoje o imposto virou fonte de negócios. Os sindicatos dizem que não é para mexer na folha para não afetar a Previdência. “Como ficará o aposentado no futuro?”, o sindicato pergunta. Mas ele não está nem aí para o aposentado; ele quer é preservar seu recurso. Os sindicatos têm medo de discutir tributação sobre folha e, se o governo tentar algo, vai haver uma restrição política enorme, custo político, greves. Não sou contra cobrar na folha para o sindicato, mas tem de ser algo espontâneo. Não estou satisfeito de ser obrigado a contribuir com um sindicato, mas talvez o fizesse voluntariamente.
O senhor é a favor do reajuste na tabela do Imposto de Renda?
Reajuste todo ano é indexação, e isso é complicado. A indexação é um dos piores males da economia brasileira, ela explica as fortunas mal formadas e a pobreza persistente que ocorrem ao mesmo tempo. Precisamos apagar a indexação da memória do brasileiro. Claro que os valores devem ser revistos: todos os valores nominais que estão na legislação tributária precisam ser revistos para se adequarem à realidade, mas não por obrigatoriedade. A obrigatoriedade é perniciosa e cultiva algo perigoso, que levou anos causando males ao país: a inflação associada à correção monetária, que precisa ser apagada da memória do brasileiro.
Como seria, então, o mecanismo ideal de reajuste?
Quando se fixa um valor nominal de qualquer coisa, é evidente que com o tempo ele perde o nexo com as informações que levaram a construir aquele valor. É preciso rever esse valor com periodicidade, mas não com correção, e sim com o critério que você quiser fazer, do contrário se traz de volta a memória coletiva da indexação. As correções que se operam são imperceptíveis e têm custo altíssimo. Já fizeram várias correções na tabela, mas que brasileiro percebeu vantagem efetiva? Nenhum. Houve melhoria de vida por conta disso na vida de alguém? Muito menos. Mas, com a correção, perdemos R$ 3 bilhões, R$ 4 bilhões. Quem pagou isso? A escola pública, os pobres, já que 18% da arrecadação federal e 25% da estadual vão para a escola pública. É dar menos recursos à escola para fazer agrado político, mas isso não é real, está no domínio da demagogia fiscal. É simpático rever a tabela do IR, mas rever por quê? Porque houve inflação? Isso não é razão. Ganhar R$ 1 ou R$ 3 vai fazer alguma diferença na sua vida? A correção é necessária, mas deve ter um impacto significativo para o contribuinte.
Esse raciocínio também vale para a tributação das pequenas e médias empresas?
O Simples tem um outro problema, que é a falta de transição: ou a empresa está no regime simplificado, ou tem de pagar tudo completo. Como o sistema está concebido hoje, induz as empresas a continuarem pequenas. Eu chamo isso de “nanismo tributário” ou “complexo de Peter Pan tributário”: é bom ser pequeno, não cresça que é ruim. Os microempresários pensam “não vou crescer para não sair do Simples”, o que não faz o menor sentido, o normal seria querer crescer, prosperar. Mas encontrar uma forma de transição é um problema difícil de resolver.
Qual a sua avaliação sobre o uso da tributação para conter a valorização do real?
Há um nó complicadíssimo que começa na taxa de câmbio, que não oferece competitividade para a indústria brasileira. Mas temos também um outro: a falta de uma couraça fiscal forte. Isso forma uma combinação perversa. Temos sobrevivido por causa da febre das commodities, acho que tinham de colocar um retrato do Hu Jintao no Palácio do Planalto. A solução não é simples, a equação cambial é complexa, vimos o que houve no primeiro mandato do Fernando Henrique. Aumentar o IOF resolve? Os estrangeiros vão se perguntar quanto é o imposto, quanto é a Selic, quanto é a diferença, e comparam com os outros países. Se compensar, ficam por aqui. Seria preciso ter um IOF altíssimo para conter a entrada de dólares, mas não sei qual a alíquota ideal. Apertam o IOF e enfraquecem a bolsa. Aí voltam uns tabus, como o controle de fluxo. Teria de ser uma arma fiscal poderosíssima. Só que haveria questionamento em fóruns internacionais, reversão de fluxo, que produz insegurança, enfim, não é uma solução trivial. Eu gosto de usar uma metáfora: é uma experiência curiosa olhar o horizonte da janelinha do avião e da cabine do piloto, porque o horizonte é o mesmo, mas parece diferente. Só quem está pilotando é que sabe.
A carga tributária brasileira é alta?
Termos como carga “alta” ou “baixa” são avaliações que dependem do tipo de Estado que a população deseja. Nos Estados Unidos, por exemplo, a atividade social é custeada principalmente pela sociedade. É uma opção política diferente da Europa do welfare state, onde é o Estado quem faz, e não o cidadão; é diferente dos Estados populistas típicos da América Latina. É fácil falar que a China tem carga tributária de 20%, mas lá não existe previdência social. A carga é baixa porque as pessoas são estimuladas a fazer poupança pessoal – a família chinesa, sempre pequena, poupa em média metade de sua renda. A educação pública é forte, mas é gratuita só para quem não pode pagar. O hospital público é bom, mas não é gratuito. Ouvi histórias de arrepiar, de pessoas que iam fazer cirurgias, o médico perguntava “quanto você tem?”, o paciente respondia, e diziam no hospital que com aquele valor só podiam fazer sem anestesia. Os chineses são treinados pra poupar, porque do contrário não vão conseguir enfrentar adversidades na saúde ou restrições produtivas na velhice. Estas são opções políticas e sociais, não decorrem de nenhum princípio tributário; é a sociedade que quer dessa forma.
Mas e no nosso caso?
Aqui temos um pretenso welfare state, um “Estado providência” que está mais para “Estado ama” ou “Estado babá”. Estamos no limite da tributação; quando se fala de carga tributária elevada, é verdade, mas poucos dizem que o gasto público é elevado quando comparado com países emergentes. Não se tributa para formar poupança do setor público. O que eleva a carga brasileira não é a poupança, é o gasto. É verdade que temos uma carga de welfare state e serviços que deixam a desejar, mas obviamente a resposta não é reduzir impostos porque o serviço não está à altura. É curioso ver que um grande tributarista, Klaus Tipke, ao falar dos comportamentos humanos diante dos impostos, cita o “ardiloso”, que sonega imposto justamente por causa das deficiências do serviço público. Na verdade, o brasileiro devia fazer o contrário: já que paga imposto, devia exigir um serviço correspondente. Mas nos falta cidadania fiscal.
No que consiste essa cidadania fiscal?
Vamos pensar: quantos brasileiros se importam com o orçamento público? Os brasileiros pedem mais empregos públicos, mais serviços públicos, e reclamam contra mais imposto. Mas essa é uma conta que não fecha, é preciso fazer uma opção. Não há clareza de que o orçamento é financiado justamente pelo imposto. Nas pequenas comunidades norte-americanas, quando o governo vai gastar, convoca a sociedade pra debater. As pessoas dizem “não queremos essa despesa porque ela vai aumentar nosso imposto”. O brasileiro quer a despesa, mas não quer o imposto. Isso é um déficit democrático nocivo pro país. A sociedade brasileira é mal acostumada: o brasileiro gosta de perder barriga sem deixar de tomar cerveja, gosta de aprender inglês dormindo. São nossos atrasados traços macunaímicos. Nós temos uma baixa densidade na estrutura de valores, que foi ainda mais abalada recentemente. Imagine um contribuinte que não é afeiçoado a pagar imposto ouvir da maior autoridade do país que o mensalão foi um “caixa dois”, “nada de mais”. Ele se pergunta por que tem de pagar imposto. Cada vez que se faz uma coisa desse tipo há um aviltamento da já mínima estrutura de valores morais no país.
E como criar esta consciência?
Só com uma relação de confiança, e isso é um trabalho de formiguinha que exige vontade política. Inclui coisas pequenas, como dizer que a data de entrega do Imposto de Renda é 30 de abril e não mais outro dia. Agora ninguém duvida mais. Todo ano havia adiamento, isso acabou. Uma atitude como essa cria valor, estabelece relação de confiança e reciprocidade. Na hora em que eu digo “se você atrasar, eu cobro uma multa que será igual à que eu pago se atrasar o imposto a restituir”, adquiro respeitabilidade em relação ao contribuinte. Fizemos uma mudança no programa do IR em que o software diz de que jeito o contribuinte paga menos imposto. Houve gente que ficou chocada com isso, mas deu uma sensação de confiança, de jogo limpo, e as pessoas ficam satisfeitas. São pequenas atitudes. Por um lado, a Receita exige; por outro, toda vez que o cidadão se sente logrado, ele reclama.
Saber com mais precisão o quanto se paga de imposto em cada produto não ajudaria a estimular a cidadania fiscal?
Nas contas de luz e telefone você vê a tributação, mas no supermercado não. Por quê? Em alguns países você faz compras e a notinha traz o imposto, porque a alíquota é única. Mas aqui temos uma série de alíquotas, o recolhimento não é por produto, mas pelo valor agregado em todos os produtos, enfim, seria uma trabalheira infernal pra nada, e ainda por cima geraria custo. Mas, supondo que houvesse um jeito de fazer isso: dá uma confusão e aí, os preços vão baixar? Não. Com as pessoas sabendo o quanto pagam de imposto, vão protestar? Não. Vão exigir menos gasto público? Também não. Então pensar em algo assim é fantasioso.
Fonte: GAZETA DO POVO
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