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4 de outubro de 2010

Reflexões sobre a crise da receita


Autor(es): Everardo Maciel O Estado de S. Paulo - 04/10/2010

Passada a fase mais aguda da crise relacionada com o vazamento de informações sigilosas na Receita Federal, convém fazer uma reflexão mais serena e racional dos fatos.

Vazamento de informações sigilosas não constitui algo inédito. Ao contrário, ocorre com mais frequência do que se poderia supor à primeira vista. Até mesmo documentos ultrassecretos militares têm sido divulgados, a despeito dos sofisticados sistemas de segurança que os protegem.

Em 1971, The New York Times publicou material secreto, denominado Papéis do Pentágono, que teve grande importância no fim da Guerra do Vietnã. Já agora a ONG WikiLeaks divulgou uma miríade de documentos secretos relacionados com a guerra do Afeganistão. Não se pode dizer que os sistemas de segurança que protegem as informações secretas do Pentágono sejam deficientes. Os vazamentos resultaram da ação política de agentes que têm acesso a essas informações.

A segurança nos sistemas de informações da Receita observa padrões elevados de qualidade. Nem sempre foi assim, entretanto. A constatação de que dados daquele órgão vazavam com facilidade levou à adoção, na segunda metade dos anos 90, de modelos muito rigorosos de segurança da informação. Investigações à época mostraram que existiam vulnerabilidades nos bancos de dados armazenados no Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro). O extinto SNI, desde a criação da Receita, tinha acesso àqueles dados, diretamente no Serpro, sem que existisse qualquer ato que acobertasse essa prática ilegal. Essas vulnerabilidades foram reparadas.

Hoje, qualquer acesso fica documentado e se subordina a um perfil que estabelece limites vinculados às atribuições do funcionário. A transferência de informações para outros órgãos está balizada com documentação e parâmetros adequados. Para evitar a bisbilhotice fiscal, estabeleceu-se o conceito de acesso imotivado, sujeitando o infrator a penalidades administrativas. O artigo 325 do Código Penal foi alterado para incluir dentre os crimes de violação de sigilo funcional o uso irresponsável de senhas de acesso a dados sigilosos.

Pode-se até entender que sejam brandas as penalidades aplicáveis ao acesso imotivado, o que pretextaria uma revisão na norma. Não é razoável, entretanto, admitir que existam significativas deficiências na legislação que disciplina a violação de sigilo.

O cerne da questão, portanto, está na responsabilidade dos que acessam, e não em fragilidades de controles ou de legislação. Como coibir as possibilidades de violação por pessoas ou órgãos com competência para acessar os dados sigilosos da Receita?

Esse tema se associa, primeiramente, à forma como a sociedade enxerga a violação de dados sigilosos. No âmbito fiscal, essa matéria não tem interesse para 93% da população econômica ativa, o que corresponde justamente à proporção de isentos desobrigados da prestação de declarações de renda. Mesmo os declarantes não ficam indignados quando tomam conhecimento de violações. Além disso, quantos inquéritos foram abertos para apurar a veiculação, por exemplo, de matérias protegidas por sigilo judicial, malgrado a banalização do instituto? Quantas pessoas foram indiciadas ou punidas por violação de sigilo?

A violação de sigilo funcional parece ser objeto de uma ampla condescendência social, sob o olhar indiferente das autoridades a quem a lei incumbe de apurar esses delitos.

Essa condescendência é também estimulada por climas políticos específicos. Em 2006, conforme noticiado pela imprensa, funcionários da Receita bisbilhotaram a vida de mais 13 mil contribuintes (políticos, magistrados, pessoas comuns) em prazo relativamente curto. Submetidos a uma sindicância para averiguar a motivação dos acessos, concluiu-se que todos eram motivados. Essa impressionante conclusão abona o entendimento de que todo e qualquer acesso sempre encontrará uma justificação plausível, afastando a possibilidade de falta de motivação.

Da mesma forma, a ascensão de uma facção sindical no comando da Receita, logo após a exoneração do secretário Jorge Rachid, implicou quebra de paradigma, ao privilegiar o alinhamento político como critério de escolha de dirigentes. Essa opção lançou bases para práticas pouco republicanas. A imparcialidade e a conduta estritamente técnica foram postas de lado, cedendo espaço a interesses menores que ganham vida própria, frequentemente de forma autônoma em relação ao que se supõe sejam as preferências político-partidárias do grupo.

A então ministra Dilma Rousseff conheceu de perto a experiência de ser confrontada com versões sobre supostos tráficos de influência, que, nas circunstâncias, pareceram uma forma de atribuir o insucesso de uma administração a também supostas pressões exercidas por contribuintes.

Esse clima político propicia descuido em relação à obrigação de zelar pelo sigilo de informações. Restabelecer integralmente o caráter republicano da Receita e punir de forma exemplar as violações de sigilo constituem a única forma capaz de preservar a intimidade do contribuinte.


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